Por Guilherme Barcelos e Anderson Alarcon
Nos últimos dois anos não foram poucas as manifestações espalhadas em municípios, capitaneadas por setores ou grupos que, socializando-se, passaram a se apresentar como porta vozes da “vontade da sociedade”, que com vestes pretas e palavras de ordem (‘o poder emana do povo’), ocuparam Câmaras Municipais requerendo o fim do pagamento de “salário” a agentes políticos eleitos, notadamente vereadores[i].
Não raro, boa parte da imprensa noticiava os atos como “exemplos de cidadania” a serem copiados e replicados Brasil afora, já que, o que estava por detrás da ideia (fim do salário), seria a (suposta e SMJ equivocada – explicaremos adiante) economia de recursos públicos e o combate à corrupção[ii].
O movimento foi realmente legítimo. Passou a sensação de que finalmente “o povo, empoderado, estava retomando as rédeas da gestão e exercendo sua sagrada soberania” – que ao fim e ao cabo faz nascer e dá sentido ao Estado Democrático de Direito tal e qual concebido e conhecido.
Mas há outro lado desta moeda que, infelizmente, não foi avaliado e tampouco noticiado. E talvez isso o que mais preocupa, pois nos leva a indagações não respondidas e sequer debatidas, necessárias a qualquer construção que se pretenda realmente democrática.
Com a criminalização[iii] da política, a partir da papagaização[iv] da equivocada ideia de que “todo político é corrupto”, ou a de que “político não faz nada”, a pergunta que se faz é: se acabarmos com a política ou os políticos, representantes eleitos democraticamente pelo povo soberano, não passando o político apenas de um reflexo da sociedade que o elegeu dentre os seus, quem afinal colocaremos em seu lugar? A polícia? O Ministério Público? O Judiciário? E em que contexto, já que não são representantes eleitos (justamente para atuarem no controle – e não politicamente!), e, nessa circunstância, soberania já não mais haveria. É isso mesmo o que queremos? Será que temos consciência do que realmente estamos pedindo? Será que cientes estamos que no fundo estamos pedindo o fim da democracia?
O movimento pelo fim do “salário” (subsídio) dos vereadores, por exemplo, caminha nessa trilha, ainda que não tenhamos nos dado conta disso. O debate que não se fez e não se noticiou envolve as seguintes perguntas, por exemplo: com o fim ou a drástica redução do salário de vereadores ou de qualquer outra autoridade e membro de poder, a pretexto de economizar dinheiro público e ou acabar com a corrupção, será que esse fim ou redução não seriam justamente remédios piores do que as próprias doenças (economia x gastos, corrupção) que se pretendem combater?
É que a um só tempo, acabar ou reduzir salário de agente político (em contraponto, aliás, aos “supersalários” angariados por determinadas categorias aqui e acolá), atrairia, de imediato, consequências absolutamente indesejáveis e incompatíveis com a opção constitucional democrática que fizemos.
A violação ao conceito democrático de isonomia e direito universal de disputa eleitoral, uma vez que, não raro, as pessoas mais simples que se pretendessem representantes políticos de sua comunidade sequer disputariam a eleição, já que afinal precisariam continuar exercendo outras funções e trabalhos em plenitude para receber salário e não prejudicar o sustento de sua família; ou nela entrariam justamente para usar ilegalmente o mandato em seu benefício próprio e quase sempre, escuso. E pronto: eis a fórmula ou consequência mágica não pensada e não debatida pelos movimentos. O convite ao retorno da plutocracia estaria aberto e ou a temporada do balcão de negócios e trocas ilegais que tanto se deseja combater, estaria mais do que aberta, mas institucionalizada. É, de fato, isso que queremos?
Colocar um parlamentar de cócoras para o Executivo? E justo o de uma esfera tão importante como o município, onde, afinal, a vida acontece de fato e de direito, já que estado e União são ficções (necessárias, é verdade!).
A pergunta que não se fez, e que precisa ser feita é a seguinte: o vereador tem que verear. Verear significa fiscalizar. Fiscalizar o dinheiro público, o prefeito, os próprios pares etc. Tudo em benefício de sua cidade. Interagir com demais membros e autoridades. Para fiscalizar é preciso ter autonomia. Dignidade. Independência. Preparo e estrutura técnica para tal. E como exercer este papel institucional, como membro representante de um poder legislativo, autônomo e independente como o é o Executivo e o Judiciário, sem ser remunerado adequadamente para isso?
Fizemos a discussão errada ou incompleta, talvez. Em lugar de apontar o dedo em riste para nosso vizinho vereador como exclusivo culpado pelos males que nos assolam, como fosse ele um E.T. lá colocado para legislar, talvez devêssemos seguir as lições de Guimarães Rosa, e nos “ensimesmar” ao menos um pouco, reconhecendo que o político que temos é apenas parte representante daquilo que somos. E eleito por nós.
Reconhecer que, em lugar de enfraquecer, talvez o que precisamos é empoderar, participar. Valorizar. E cobrar. Controlar. Dotar o representante de instrumentos para a realização plena de seu mister constitucional. Com tanto poder e tantas coisas em jogo, alguém imagina um fiscal, um promotor, um prefeito ou um juiz recebendo um salário de 800 reais por mês, ou mesmo fazendo trabalho voluntário?
No campo do real (e não do ideal – que só existe no mundo das ideias e por isso se chama ideal), é mesmo possível que um membro de Poder, exerça suas funções em plenitude, trabalhando de forma voluntária, sem prejuízo de sua dignidade e ou sustento de sua família?
A resposta virá: Não!, mas o vereador pode fazer outros trabalhos e só vai na sessão da Câmara, à noite, uma ou duas vezes por semana. Ser vereador é um extra. Não precisa de remuneração.
De fato, há ainda os que pensam que a política e o exercício da vereança só ocorrem na hora da sessão, e que os problemas são todos automática e previamente debatidos, preparados e que exigem do representante eleito que “apenas compareça à sessão”. Em resumo, tudo cai do céu e se operacionaliza como que por milagre. É como um juiz que “só dá a sentença” num processo que tramitou e passou por todas as fases magicamente, sem a participação, tempo e trabalho de ninguém e que de pronto foi concluso/finalizado (por milagre) para sentença. Enquanto isso o vereador não faz política, não está na rua, no bairro, na comunidade, atendendo o povo, ouvindo, cobrando, fazendo reuniões, e exercendo suas funções (assessorar, verear=fiscalizar, legislar, julgar, administrar). Na verdade ele está deitado. E em berço esplêndido. Apenas precisa ir na sessão. Suas cinco principais funções acima simplesmente se operacionalizam no limbo, num horário paralelo ao tempo que lhe permite ainda exercer em plenitude outras atividades.
Francamente. Não há nada pior que a falta de honestidade intelectual.
Claro que há políticos ruins. Há. E talvez não sejam poucos. E não somente nestas atividades e profissões. É a vida real. E para isso existem leis. E para isso precisamos debater, com honestidade, em busca de controle e soluções. Que não são mágicas. De remédios, amargos, às vezes. Mas que funcionem, e se prestem ao propósito e que não sejam piores do que a doença que se pretenda combater.
Felizmente, em tempos de “crise democrática” e papagaização, o STF, guardião intérprete da Constituição Brasileira que é, membro máximo de UM dos TRÊS poderes autônomos, independentes e harmônicos entre si, tem reconhecido, aqui ou acolá, a necessidade do respeito a essa independência e mister funcional de outros poderes e seus representantes.
O fez recentemente, ao assegurar a última palavra, dentro dos limites constitucionais, óbvio, ao Poder Legislativo, em se tratando de julgamento de contas do Executivo[v].
Ligou o alerta, há pouco tempo, para a não ingerência de um poder sobre o outro, como no caso do afastamento liminar do então Presidente do Senado Federal, não referendado pelo plenário[vi], em obediência ao comando constitucional da separação dos poderes.
E, mais brevemente, nos últimos dias, reconheceu ser devido e constitucional o pagamento de 13º e terço de férias aos membros de Poder, agentes políticos municipais, notadamente Executivo[vii] e Legislativo, que é aonde, repita-se, a vida, afinal, acontece.
Nos termos do parágrafo 4° do artigo 39 da Constituição Federal, “o membro de Poder detentor de mandato eletivo, os ministros de Estado e os secretários estaduais e municipais serão remunerados exclusivamente por subsidio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verga de representação ou outra espécie remuneratória”.
Desde o advento da Carta de 1988, temática demasiado controvertida é o pagamento de 13° salário e terço de férias aos agentes políticos. A grande maioria dos tribunais (de Justiça e de contas) Brasil afora sempre considerou que o pagamento dessas vantagens a agentes políticos, em especial prefeitos e vereadores, seria inconstitucional, tudo por força do dispositivo constitucional acima citado. Logo, considerando que a Constituição veda expressamente que membro de poder detentor de mandato eletivo receba gratificação, adicional, abono, prêmio, etc., o pagamento de 13º salário e férias também restaria albergado na restrição constitucional, sendo, pois, proibida tal “benesse”.
A matéria, no entanto, foi submetida recentemente ao crivo do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, nos autos do Recurso Extraordinário 650.898/RS, a maioria do STF decidiu, com repercussão geral reconhecida, que o pagamento de 13º salário e terço de férias a agentes políticos não fere o mencionado artigo 39, parágrafo 4°, da CF. Consignou-se, pois, por maioria, a partir do voto proferido pelo Ministro Roberto Barroso, que o regime de subsídio é incompatível com outras parcelas remuneratórias de natureza mensal, o que não seria o caso do 13° e das férias, pagos a todos os trabalhadores e servidores, com periodicidade anual. Assim, o pagamento de 13° salário e terço de férias aos agentes políticos, em especial prefeitos, secretários e vereadores, não feriria o parágrafo 4° do artigo 39 da CF, tendo em vista que estas vantagens são direitos de todos os trabalhadores, inclusive dos agentes políticos.
O Recurso Extraordinário foi interposto pelo município de Alecrim (RS) em face de acórdão advindo do Órgão Especial do TJ-RS que julgou inconstitucional a lei municipal (Lei 1.929/2008). A lei em comento previa o pagamento de verba de representação, terço de férias e 13º aos ocupantes do Executivo local. Para o TJ, a norma feriria justamente o parágrafo 4° do artigo 39 da CF, que veda o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de remuneração ou outra parcela remuneratória aos subsídios dos detentores de mandatos eletivos.
Com a decisão do STF, porém, foi reconhecida, com repercussão geral, a constitucionalidade da fixação de pagamento de terço de férias e 13° salário aos agentes políticos, não havendo falar na ofensa ao dispositivo constitucional precitado. O relator do caso, ministro Marco Aurélio, manteve a decisão regional, tudo por entender que prefeitos e vice-prefeitos não podem ter benefícios equiparados ao de servidores, pois não têm natureza profissional com o Estado, mas apenas relação política e eventual. A mesma tese se aplicaria a ministros, secretários, deputados, senadores e vereadores, na visão do ministro. Esta posição foi acompanhada pelos ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Venceu, no entanto, a diretriz assentada pelo voto do ministro Luís Roberto Barroso, que foi acompanhada pelos ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Dias Toffoli, Teoria Zavaski (voto proferido em maio de 2016) e Gilmar Mendes. Portanto, por seis votos a quatro (o ministro Celso de Mello se absteve de votar), o STF declarou a constitucionalidade do pagamento de 13° salário e terço de férias a agentes políticos, não vislumbrando, com isso, qualquer afronta ao artigo 39, parágrafo 4°, da CF.
Pois bem. Não obstante o decidido pelo STF, a questão é a seguinte: tal pagamento se afigura como algo “impositivo” ou “automático”? Ou, de outra forma, trata-se de algo que vale por si e se basta, ou é necessário o devido processo legislativo (que a vantagem seja prevista em lei), o prudente acompanhamento jurídico (mediante estudos e pareceres), a indispensável previsão orçamentária e o respeito às demais previsões normativo-financeiro-orçamentárias (Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo)?
Com efeito, ao contrário do que muitos têm sufragado, não se trata, o alcance dessas vantagens aos agentes políticos, de algo que possa surgir de imediato, isto é, com base única, exclusiva e direta em decisão do STF, sem que se tenha previamente todo um estudo de viabilidade, com pareceres jurídicos, e sem que se dê o devido trâmite a um processo legislativo formal e materialmente legal/constitucional, com justificativa, iniciativa, deliberação, votação, sanção ou veto, promulgação e publicação.
De igual maneira, deve-se confrontar a realidade do Município[viii] junto às diretrizes legais relativas ao quadro orçamentário-financeiro (gastos com pessoal, previsão orçamentária, etc.), sem o que, diga-se de passagem, a despeito de objetivar uma solução para o enredo, os agentes políticos poderão incidir em diversas ilegalidades, frutos não da previsão em si, mas das suas consequências.
Em suma, a questão é complexa. E não pode, pois, o agente político, decidir simplesmente por implementar tais vantagens nos limites da sua esfera de competência, sem que se tenha atenção às demais diretrizes legais e constitucionais. O resultado pode ser desastroso, acabando por trazer, ao final e ao cabo, várias consequências para o Ente Federado e para o próprio agente político investido da e na condição de representante.
Assim sendo, em conclusão, é impositivo referir que a hipótese de implantação dessas vantagens aos agentes políticos, no âmbito Municipal ou nos demais, no Legislativo ou no Parlamento, deve ser acompanhada de robusta orientação jurídica. São vários e variados os requisitos jurídicos necessários à medida (formais, materiais, constitucionais – federais e estaduais – e legais, orçamentários e financeiros), reclamando atuação especializada e que materialize estudos e pareceres indispensáveis à consecução deste tipo de pagamento aos respectivos agentes (13° salário e terço de férias). A previsão dessas vantagens, disse o STF, é constitucional. O caminho para tanto também deve o ser (constitucional e legal em sentido estrito).
A decisão recente do STF sobre o assunto, aliás, devolve um pouco de equilíbrio e esperança num cenário de tempos estranhos e preconceituosos que ultimamente temos vivido. Que se renove o debate, pois.
[i] http://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2016/06/grupo-se-organiza-para-tentar-reduzir-salarios-de-vereadores-de-barbacena.html
[ii] http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2015/08/apos-pressao-popular-vereadores-reduzem-salario-em-jacarezinho-pr.html
[iii]http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/25949
[iv] Oriundo da prática de se repetir e disseminar o que se ouve, de forma automática e sem filtrar ou avaliar sua veracidade, ponderação ou procedência, criando um estado de coisas, estórias ou fatos que tomam corpo como se verdade fossem, sem sê-las. Termo utilizado pelo professor Anderson Alarcon
Guilherme Barcelos é advogado, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS), especialista em Direito Constitucional e Eleitoral.
Anderson Alarcon é advogado e professor. Especialista em Direito Eleitoral pela Universidade Nacional Autonoma do México (Unam). Mestrando em Processos Políticos e Instituições Públicas — Universidade Estadual de Maringá (UEM). Membro-Fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 7 de março de 2017, 12h55