O que você acha do vereador e seus salários?
Anderson Alarcon faz uma reflexão acerca dos tempos difíceis que vivemos.
Antes de firmar um posicionamento sobre o assunto, vale a pena a leitura e a análise do texto.
A advocacia não é profissão de covardes, já nos disse o ilustre e sempre saudoso Sobral Pinto, que por muitos anos foi o patrono de nossa pujante UEM – Universidade Estadual de Maringá, junto ao CASP – Centro Acadêmico Sobral Pinto, do glorioso curso de direito.
Hoje, 11 de agosto, dia em que celebramos a instalação dos dois primeiros cursos de direito no país em 1827 (São Paulo e Olinda), e por isso mesmo, dia do advogado, quedei-me a pensar sobre o tempo estranho em que vivemos.
Tenho estado pesaroso pela onda de moralismo exacerbado (ou falso moralismo), de satanização, demonização da política e dos políticos, justamente aqueles que exercem (ou deveriam exercer) a mais honrosa função que alguém pode desempenhar: a participação cidadã, política e democrática em prol da comunidade.
Temo pela onda “depuradora” levada a cabo neste tempo por movimentos populares, em verdade e claramente popularizados por este ou aquele grupo e que, como tal e muito articuladamente, vendem-se como se “OS” populares fossem.
Na mesma linha, como já escrevi algures, lamento a prática sorrateira e oportunista de opiniões publicadas, que como tal e, pegando carona nas ondas acima, apresentam-se e propagam-se como se “A” opinião pública fosse.
E ainda que se papagaizem na massa, a filosofia há tempos, já nos lembrou, que nem sempre maioria é conceito de razão. Que dirá a Alemanha nazista. Aliás, não nos esqueçamos, jamais, que ondas supostamente moralizadoras como essas sempre precederam golpes, revoluções e guerras.
E hoje, especialmente hoje, fiquei pesaroso, por uma soma de acontecimentos orquestrados. Semana passada ecoaram Brasil afora movimentos “populares” (ou seriam popularizados?) ocorridos no Paraná defendendo a fixação do salário (subsídio) do vereador em no máximo a um salário mínimo. Dois dias depois, outra cidade deflagrou o mesmo “movimento”. Ontem a noite, num programa humorístico, idem, sobre uma outra cidade, desta vez em São Paulo. Hoje pela manhã, em todos os jornais em rede nacional, outro movimento no mesmo sentido em outra cidade do interior do Paraná, ironicamente uma das que tem um dos mais tradicionais cursos de direito do Estado.
Em todas as divulgações, opiniões publicadas vibraram, e fizeram coro para que se reproduza pelo país, como se um bom exemplo fosse, nascendo daí o desafio para nós, de entender o que pode estar por detrás disso.
São vários vieses. Daria (e dará) uma tese acadêmica.
Por ora, chamo atenção para o fato constante de que alguns seguimentos da sociedade, consciente ou inconsciente, insistem em tentar enfraquecer o sistema. Seja para empodeiarem – se a si mesmos (o pleonasmo é proposital), seja para, por via obliqua, desqualificar os que estão no poder, gerando a ideia de que, se o poder já não funciona, acabemos com ele (bom, aí, pronto, estaria desfeito o Estado Democrático de Direito tal e qual concebido, para dar lugar a alguma outra forma de poder. Dito de outro modo, alguns até chamariam de golpe. Mas aí é outra história).
Trocando em miúdos neste caso, defender o fim do subsídio do legislador municipal, seria o mesmo que afirmar o seguinte: – pagar vereador para quê, já que estes nada fazem!? Não há outro sentido a se extrair destas entrelinhas. E aí é que mora o perigo, ainda que não tenhamos nos apercebido.
Vou explicar.
O Brasil não passa de uma soma de municípios. União e Estados são ficções jurídicas, necessárias para a organização e bom funcionamento do país, é verdade. Todavia, convenhamos, a vida acontece mesmo é no município, e é justamente o seu conjunto de habitantes que formam o Estado e o País.
Daí porque as questões de interesse municipal são tão importantes quanto a de impacto nacional e estadual, de modo que uma não se conjuga sem a outra. São interdependentes. Digo mais, no município, deve se pensar e agir localmente, para impactar globalmente.
Nesse cenário, sobressai indispensável a figura do legislador local. Não sem propósito, o vereador é o primeiro político do país, e que sobreviveu a todos os tipos de Estado e Regimes, exatamente porque, nesta condição, é o político que em primeiro contato está com a sociedade, e que por primeiro conhece seus desafios e problemas. Um verdadeiro síndico da comunidade, viabilizando a administração e o convívio social (função de assessoramento municipal). Experimente retirar o síndico de seu prédio, para ver o que acontece?! Mais do que isso, o vereador é também quem julga o prefeito (função julgadora), e, sobretudo, FISCALIZA o dinheiro público (função fiscalizadora), além de fazer leis de sua competência (função legisladora).
Para isso, obviamente que o legislador precisa de independência e autonomia para realizar sua função. Se o seu vereador não faz isso, o problema não é o cargo, e sim a pessoa. Troque-a! Mas não apequene o cargo. Não estrangule esta função essencial de fiscalização e defesa primeira da comunidade.
Talvez não nos demos conta de que acabar com “salário” do vereador ou pagar um valor que lhe retire a autonomia e independência exigidos ao cargo (mesma autonomia que outras autoridades precisam ter, como juízes, promotores, prefeito, delegados, etc), no final das contas poderá criar uma realidade pessoal ainda mais perversa da que as vezes já vemos hoje.
Escrevi já sobre isso, em recente parecer contra tentativa semelhante de outrora[5]. Mas, para resumir, adianto que a vingar esses movimentos, estaríamos institucionalizando a: 1)elitização da política, já que as diferentes categorias da sociedade nem sempre teriam condições de dedicar-se a vereança tal e qual espera-se; 2) mercantilização dos interesses comunitários – estariam fortemente estabelecidas e até incentivadas as práticas escusas de balcão; 3) apequenamento ou o fim do legislativo municipal – ausência de autonomia e independência.
Prejuízo completo à sociedade e violação ao EDD. Ou o Ministério Público vai assumir também este papel? Tudo bem. Mas para isso, então, precisaremos mudar a constituição. Que bom. Quem sabe assim oficializamos o quarto e quinto poderes, já que de fato existentes. Xiii, mas e a Cláusula pétrea?. O Poder Constituinte Derivado não pode mexer. Resultado = Golpe? Novo Estado? Nova ordem social?
Aliás, e por falar em obediência à nossa Constituição, não é demasiado lembrar que lá (ou aqui), no âmbito do município, são três os poderes instalados, cada qual com sua função, não sendo um maior que outro, mas apenas com competências complementares e diferentes, independentes e harmônicos entre si.
O membro do Poder Judiciário é o juiz, que recebe cerca de R$ 25 mil por mês, e mais cerca de R$ 4 mil de auxílio moradia; o membro do Poder Executivo é o Prefeito, que recebe cerca de R$ 15 mil por mês, e nada de auxílio moradia. E o membro do Poder Legislativo é o vereador, que recebe, em média[8], menos de R$ 4 mil por mês, e nada de auxílio moradia.
Isso para ficarmos na comparação entre os poderes no município. Se a comparação incidir sobre o legislativo nas diferentes esferas (municipal = vereador), estadual (deputado estadual) e federal (deputado federal e senador), saltaríamos dos R$ 4 municipais, para, em média, R$ 25 a 30 mil/mês (estadual e federal), isso sem contar as verbas de gabinete etc, que na grande maioria dos municípios não tem.
Então quer dizer que os juízes, promotores, deputados, prefeitos, fiscais etc etc, ganham bem porque necessitam de autonomia e independência para o desempenho de suas funções. Quer dizer que o vereador (que também é fiscal) não?
Se os poderes são iguais e se não há um maior que outro, porque então não fixar os subsídios dos demais cargos e poderes também em um salário mínimo, já que, axiologicamente e em certa medida, constitucionalmente equiparados?
Sim, eu sei. A questão de fato não é essa. Realmente, o equilíbrio da democracia tem um custo. O funcionamento do Estado também. O problema é que muitos movimentos atiram no que vêem (ou são levados a ver), mas acabarão acertando no que não vêem, ou seja, a própria democracia e a defesa dos interesses do povo, soberano[9] que deveria se manter.
São tempos estranhos.
A esse respeito, nos lembra o ilustre pensador político brasileiro, Guilherme de Salles Gonçalves:
Interessante fato histórico, que é solenemente desconhecido por moralistas de plantão: foi a remuneração dos legisladores eleitos que permitiu, desde o Século XIX, que representantes eleitos pelas classes trabalhadoras e mais pauperizadas exercessem livremente o mandato. Isso permitiu acabar com o monopólio do voto e da elegibilidade censitária – só quem tivesse patrimônio podia votar e se candidatar, como no Brasil do I Império. E isso abriu portas para o sufrágio universal, base estruturante do nosso princípio democrático.
Essa prerrogativa é fundamental e essencial para a democracia representativa no Estado Democrático de Direito. Vulnerá-la e amesquinhá-la por circunstâncias morais frágeis é violar a cláusula democrática em sua essência; é apequenar o próprio poder legislativo. Tempos difíceis.
A julgar pelo raciocínio aplicado nestes exemplos, aguardo o chamado para os movimentos contra os “salários” dos deputados, juízes, senadores, prefeitos etc. Ainda não recebi também o convite para a manifestação contra os auxílios moradias de “apenas” R$ 4 mil por mês, e a fixação geral de um salário mínimo para todos. Não, eu não sou contra. Pelo contrário. Todavia, só me pareceria mais coerente, a julgar pelo critério até aqui publicizado e popularizado.
Em meio a esta neblina toda, só mesmo a leitura do livro de Margarete Coelho (A democracia na encruzilhada) para lançar um pouco de luz e alento para aqueles que se orgulham do significado e misteres deste 11 de agosto.
Como sou de fazer do limão, limonada, acho que movimentos como esses devem nos convidar a pensar também em outras coisas. Pensar na institucionalização de educação para cidadania e direito humanos, para que todo cidadão, do primeiro ao último dia que estude na vida, lide com conceitos básicos de que todos nós cidadãos devemos estar livres e conscientemente empoderados (e não manipulados).
Pensar na necessidade de uma nova repactuação federativa. Os municípios brasileiros estão quebrados. É aonde a vida acontece. São os que mais fazem e os que menos recebem.
Pensar na institucionalização de procedimentos que acabem com vergonhas históricas de direitos humanos, cidadania e igualdade. Cite-se o exemplo das mulheres. Somos um país com mais da metade de mulheres, que diariamente enfrentam desafios e procedimentos para exercer direitos básicos de cidadania.
Não me venha dizer que em tese há igualdade. Sem essa. Em tese, o salário mínimo é um sonho, basta ler o artigo 6º e 7º, IV da Constituição Federal. Em tese todos somos iguais (art. 5º). Em tese. Precisamos mesmo é de ações que afirmem certos direitos, para corrigir certas desigualdades reais históricas.
Voltando ao caso dos vereadores, é preciso razoabilidade, ponderação.
Quando a sede de justiça é exagerada, vira justiçamento, e certamente se voltará contra aqueles que o desejam.
Se insistirmos em trocar o sistema e os cargos, quando o que se quer é trocar as pessoas, acabaremos por “jogar a água suja com a criança dentro”. Oxalá este banho não demore tanto.
Enquanto isso, seguimos a lutar, ainda que “como nuvem contra o metal”, como já nos lembrara R. Russo:
“Não me entrego sem lutar, tenho ainda coração. Não aprendi a me render. Que caia o inimigo então. E essa história não estará pelo avesso assim sem final feliz. Teremos coisas bonitas pra contar. E até lá, vamos viver. Temos muito ainda por fazer. (A luta) começa agora, e nós apenas começamos”.
Um abraço a tod@s advogad@s, polític@s, profissionais e cidadãos que lutam por justiça e democracia cidadã.
Anderson Alarcon
Advogado