Reflexões na Covid por João Maria de Lima

Reflexões na Covid por João Maria de Lima

 

O que foi duro de sofrer é doce de recordar. (Provérbio italiano)

João Maria de Lima

Uma doença é, em muitos casos, um momento de reflexão. Para quem tem uma vida cheia de atividades, cujo dia começa, geralmente, às cinco da manhã e passa por exercícios físicos, leitura, organização de projetos, gestão de pessoas e de crises, tomada de decisões, atenção à família (sendo filho único de pais separados e idosos), somente uma inoperância na saúde para nos levar ao exercício reflexivo do silêncio.

Um amigo, o Agenor, a quem a correria das aulas e do cotidiano me impede de encontrar mais do que eu gostaria, me indagou por que eu não postei nos últimos dias. Disse a ele que estava em silêncio por questão de saúde e que tinha sido acometido pelo terrível vírus da Covid-19.                                                                                                                     Restou claro que o calar também é uma maneira de se comunicar. Todos são capazes de recordar situações em que o silêncio de alguém foi mais eloquente do que mil discursos.

Para quem tem covid, o dia passa e o sol adormece nos confins da alma. A vida é um dia longo que parece não anoitecer nas suas longas tardes. Até que a hora triste venha cair no chão do quarto. É hora de abrir o álbum de recordações, o mundo de lembranças invisíveis para os outros. Elas contam a história de um tempo que não perdi, ainda que perdidos tenham sido alguns sonhos. Cada um de nós é pastor de seus próprios rebanhos. De felicidades e tristezas, e que já dormem num lugar qualquer da alma, apascentados de todos os desejos.

O tempo é o tiro de dor que estilhaça a vidraça do quarto. Agora, é abrir a janela e deixar que a noite entre com suas saudades. E esse silêncio? Esse silêncio triste que se derrama sobre  todas as coisas? Esse silêncio que adormeceu sobre os telhados, os muros, os quintais? Esse silêncio que é tudo quanto resta do tempo imenso da quarentena?

Recolhi-me ao silêncio, à escrita e à leitura, embora desobedecendo meu médico, primo e amigo Aurélio Bráulio, infectologista, que tem sido grande personagem no roteiro diário de cura de muita gente acometida por essa doença.

Costumo, principalmente em momentos de dúvidas e de tormentas, voltar-me para a leitura religiosa. Diante desse cenário ruidoso em que vivemos, às vezes, não paramos para ouvir a voz de Deus. Ele nos fala, nos ouve, mas, em muitos casos, somos nós que não sabemos fazer o necessário silêncio para escutá-Lo ou a nossa fé não é suficiente para fazermos silêncio, a fim de que possamos contemplar o mistério que nos envolve. E foi sobre esse silêncio questionado, que passei a refletir.

Na quarentena, meditei no silêncio e rezei com todas as minhas forças para que Deus pudesse acalmar o coração de minha mãe; ao mesmo tempo em que pedi resistência para seus joelhos a fim de que aguentasse os longos momentos em que rezava para minha recuperação. Sabia que, por mais que eu dissesse a ela que estava bem, a distância que somos obrigados a manter põe em dúvida quaisquer fatos. Certíssimo é o pensamento de Almeida Garret: “A mãe é a mais bela obra de Deus”.

Dediquei parte do meu tempo – não mais do que ela merece, reconheço –à leitura da palavra de Deus. Revisitando o Antigo Testamento,  no Primeiro Livro dos Reis, em seu capítulo 19, vi que Deus solicitou ao profeta Elias que subisse à montanha, pois, lá em cima, iria lhe falar. “Antes do Senhor, veio um vento impetuoso e forte, que desfazia as montanhas e quebrava os rochedos, mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento houve um terremoto, veio um fogo, mas o Senhor não estava no fogo. Depois do fogo, ouviu-se uma voz de brisa ligeira”. Com isso, aprendi que Deus nos fala no silêncio. É no silêncio que Ele escuta e fala em nossa alma e coração. “Descansa no Senhor e espera por ele”, nos lembra o salmista. E o silêncio talvez seja a melhor resposta da fé, aquela que convém diante dos sinais – embora, no meu caso, quase inexistentes– de morte que tentam ofuscar os sinais de luz.

Veio-me, ainda neste silêncio, a lembrança do coelho que vive a contar o tempo com seu relógio, em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Fui reler algumas passagens. Alice segue o coelho dentro de um buraco que, sem que ela disso suspeitasse, era a entrada de um mundo fantástico. De repente, ela se viu dentro de um mundo completamente desconhecido e maluco. Algo muito parecido com este mundo no qual tive de viver por, pelo menos, 14 dias.

Duplamente vacinado, a doença causou-me pouquíssimo transtorno físico em relação à situação de outros pacientes e vítimas. Dores no corpo, dor de cabeça, muita tosse e indisposição não me deixaram tão mal quanto saber que perdi um amigo de infância, de mesma idade, companheiro de futebol e de escola na minha outrora pacata São José de Mipibu, pela mesma doença.

No incidente de Alice, o problema a resolver é ficar seco, pois todos caem dentro de um tanque e ficam molhados. A grande questão é que temos um problema igual para seres muito diferentes: pássaro, caranguejo, macaco. Não sou médico, mas, observando o cenário da doença, percebi como ela exige soluções diferentes para o problema de cada um, assim como na história do livro.

A rotina da doença não me pegou. Há dias eu pensava no que dizer quando ela acabasse. Em como transformar esse momento de alívio em um aprendizado,  relembrando valores e sentimentos que carrego, exercitando a máxima chinesa: “Se você tiver de parar um pouco, fique sentado, mas sempre olhando para a frente, nunca para o caminho já percorrido”.  Essa tempestademe trouxe medos diversos. Sei que isso faz parte inevitável da vida. John Lennon disse que “a vida é o que acontece enquanto a gente está ocupado fazendo outros planos”. Os valores servem para esta hora. Eles são a bússola que a apontará a direção ou a âncora que impedirá que se fique à deriva, ao sabor dos ventos.

Passei pela doença e posso dizer que, revigorado de fé e com a alma cheia de esperança, o desejo de viver está cada vez mais forte,  e, como disse Gonzaguinha, “a chama em meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão”. Agora, é hora de dar glória a Deus e de não esquecer as palavras do profeta Isaías: “Aqueles, porém, que esperam no Senhor, renovam suas forças, criam asas como de águia, correm e não se fadigam, caminham e não se cansam”.

UVB - União dos Vereadores do Brasil